Aglomerar Lacan a tempo
- Fábio Sanchez
- 6 de nov. de 2024
- 8 min de leitura
Atualizado: 20 de nov. de 2024
Este trabalho não é apenas fruto do cartel Psicanálise e Política do Fórum da Campo Lacaniano de São Paulo, que já vai para seu segundo ano. Brotou de mais referências como a sombra da voz de pelo menos outro cartel, Inconsciente e Temporalidade, este inacabado devido ao falecimento precoce, durante a pandemia, de sua integrante mais um, Beatriz Cauduro Gutierra. Que aqui se esteie sua memória.
Para despir de qualquer extravagância essa relação entre política e tempo convoco, por ser tão ancestral, a noção de “ação específica”, que é o “comportamento que permite a satisfação de uma necessidade” (Freud, no Manuscrito E, em 1894). E a estico até Lacan, para quem o tempo se define no simbólico e no corte, e não nas diversas nomeações de hora, dia, mês etc. Noções que Lacan pinçou nesta seara, como ‘tempo lógico”, “ato” e “corte”, referem-se também a ações de um analista, capazes de interromper metonímias que se supunham eternas na vida de um sujeito. Assumo aqui a interpretação de Lacan de que a psicanálise é um sintoma, no sentido de ser algo que retorna, um “efeito daquilo que se tenta manter fora” (ESTEVÃO e PRUDENTE, 2020, pg. 7), portanto um modo de subversão.
Há mais elos nessa relação, que ignoro ou apenas tateio, que sustentaram a criação do cartel em curso e que animam seus outros quatro integrantes, levando ao vínculo destemido entre Jacques Lacan e os filósofos Alain Badiou e Slavoj Zizek. Esse novelo foi a proposta original do cartel.
Não são pequenas as diferenças entre eles. Badiou diz-se platonista. É romântico, radicalmente otimista. Vê um cenário sempre em crescimento e melhorando. Escreveu “Em busca do real perdido” e “Elogio ao Amor”. Sua máxima ética é “continue sempre, mesmo que você tenha perdido o fio da meada”. Zizek é cínico, piadista, escatológico, entusiasta do negativo. Parece que em seus escritos há sempre algo se desfazendo. Escreveu “Bem vindo ao deserto do real”, “Violência” e “Vivendo no fim dos tempos”.
Suas leituras de Lacan lambem e aglomeram questões como a formação do sujeito, o ato analítico, as fórmulas da sexuação, o “não-um” e o tempo lógico. Os dois filósofos parecem concordar em suas noções de “acontecimento”, que Badiou encontra em Lacan e adapta à sua própria teoria, e que Zizek adota.
No recorte que escolhi aglomerar, psicanálise e política, o tempo e o ato são vínculos. E para que o novelo se sustente e ofereça um generoso fio da meada, registre-se o que se pode encontrar em Lacan de uma certa teoria da “lógica coletiva”. O termo, exatamente este, é utilizado apenas uma vez por ele, em “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada” (LACAN, 1998, pg. 211), mas sua obra avança diversas vezes sobre essa hipótese, como nos conceitos pinçados por Rithée Cevasco (CEVASCO, 2014, pg. 123 e 124). Note-se que em nada esta lógica coletiva exila a questão do temporal e sempre se vê diante de um processo, uma transição. Cevasco cita como integrantes da “lógica coletiva” lacaniana:
· A teoria do ato analítico (1967/1968, nos seminários 15 e 16), quando Lacan pensa as operações de alienação e separação não mais com o viés da formação do sujeito, mas na estrutura do ato analítico, lançando mão de modelos matemáticos de grupo, como o grupo de Klein. Lacan pensa a operação matemática não involutiva, ou seja, na qual após se alcançar um "produto", é impossível retornar ao ponto de partida. Assim como, numa análise psicanalítica, seus efeitos finais não podem ser dissolvidos depois que ela cessa.
· A formalização dos laços sociais como discursos (1969/1970, seminários 17 e 18), investigando a construção de realidades e semblantes e onde a articulação significante produz uma amarração social ao mesmo tempo em que, como efeito de uma circulação e de uma produção de verdade, apresenta o sujeito do inconsciente.
· As fórmulas da sexuação (1973/1973, seminários 19 e 20), com a introdução do “não-todo” da lógica da sexuação feminina, que pode ser apresentada como um tipo de antídoto a toda política autoritária ou excludente. Haveria, portanto, uma economia de gozo que não exclui o “não-todo” da posição sexuada feminina, e que não pode ser coletivizada.
Deve-se notar, nessa lógica, que o tipo de identificação que estrutura o coletivo é horizontal, em detrimento da identificação vertical. Não outorga a consistência de um sujeito suposto saber a ninguém. E ainda assim permite a instalação de papéis que substituem a figura do líder, como é o caso do mais-um nos cartéis (estes, peça essencial da lógica coletiva lacaniana, segundo Cevasco, por sua horizontalidade e temporalidade).
Outro detalhe (gritante) é que a lógica coletiva proposta por Lacan não tem similaridade com a lógica de grupos freudiana de Psicologia das Massas e Análise do Eu. Para Lacan, os sujeitos não compartilham algum afeto ou sintoma (a instalação de um mesmo líder no ego como ideal de eu, por exemplo). O que eles compartilham é uma falta, e a individualidade está em como cada um lida com isso. Como diria Pierre Bruno (CEVASCO, pg. 136), em Lacan a verdade do um está suspensa à verdade de todos, ainda que só cada um, um por um, responda por ela.
Pensando assim o coletivo em Lacan, partamos para o que se pode fazer com isso, e o que esses autores fizeram. O filósofo Vladmir Safatle acredita que, para Badiou e Zizek, o que une psicanálise e política (no caso, ao marxismo de ambos) “é a ideia de que é possível uma abertura em ralação àquilo que desarticula a nossa capacidade de ordenar coisas no espaço e no tempo” (SAFATLE, 2012).
Falarei mais de Badiou, que foi mais estudado até agora no cartel. O filósofo e psicólogo argentino Roque Farrán aponta “uma continuidade do pensamento entre Badiou e Lacan, sobretudo a partir do conceito de sujeito que ambos elaboram, particularmente na dimensão política vinculada à intervenção do ato, em um contexto assinado pela contingência” (FARRÁN, 2014, pg. 39).
Esse autor está enxergando uma confluência de ideias que buscam “maneiras de transformar mundos”, título de livro recente de Safatle. São processos talvez diferentes, o que conduz a um ato do sujeito e o que conduz a uma revolução social, mas não surpreende que Badiou, Zizek e outros insistam em relacioná-los, o próprio Freud defendeu que o que vale para o indivíduo (ontogênese) vale também para a espécie (filogênese): para ele, a sociedade reproduz, como grupo, os acontecimentos psíquicos dos indivíduos, pensamento que marca a maior parte dos estudos freudianos ditos sociais (SELIGMAN-SILVA, 2011, pg. 26). O que une ambos a Lacan seria portanto uma negatividade que, de alguma forma, altera uma estrutura recolocando o sujeito, seja ele um grupo ou não, em outra posição.
Ocorre que Lacan é, como Freud, partidário das estruturas clínicas, e embora o ato represente uma mudança, não se pode dizer, por exemplo, que um neurótico obsessivo deixe de sê-lo por conta de um corte de sessão. O tempo lógico lacaniano não reivindica uma nova estrutura do sujeito mas, em vez disso, uma ação individual que considere os outros.
Estamos diante de um paradoxo que contrapõe, de um lado, estrutura e sintoma (sociedade desigual, demandas de um determinado grupo, sintomas obsessivos, perversão etc), e do outro o processo (revoluções, crises, eleições, ato, passagem ao ato etc). Mas a ideia de tempo lógico, e me parece que isso é percebido por Badiou e Zizek, permite uma conexão que relativiza esse paradoxo estrutura versus processo. O que o tempo lógico e o ato reivindicam é uma transformação que parte de um mal-estar e o supera. “Agir é arrancar da angústia a própria certeza. Agir é efetuar uma transferência da angústia”, diz Lacan (LACAN, 2005, pg. 88).
Além disso, a própria estrutura lacaniana admite enodamentos e uma estrutura topológica, inspirando Badiou, em algo como o que descreve Eduardo Prado Coelho
“É esta a situação da estrutura – a estrutura como algo que apenas está presente nos seus efeitos e que inclui entre os seus efeitos a sua própria ausência, a estrutura como algo que põe o sujeito em cena e lhe atribui um papel, sem nunca se tornar visível em plena evidência dessa cena [...] (COELHO, 1967, p. 28).
Porém, se a definição canônica de sujeito em Lacan parte da cadeia significante (“um sujeito é aquilo que representa um significante para outro significante”), ou seja, do simbólico; também é imprescindível entende-lo em relação ao objeto a, o significante da falta do outro, o falo etc, portanto, também a partir do real e do imaginário. Badiou escolhe trazer esses conceitos para a filosofia e a política, mas o faz excedendo Lacan e colocando-os num lugar anterior da oposição entre fenômeno e estrutura.
Entenda-se: para Badiou o sujeito resulta de ele mesmo circunscrever um “ponto limite de efeito de estrutura a posteriori, ao efetuar-se em uma nominação que não corresponde às relações significantes estabilizadas”. O que Badiou prega é que não há um sujeito universal, válido estruturalmente para todos os casos, tal como prega a filosofia ou as neurociências. Haveria apenas um sujeito qualificado, constituído em diversos “procedimentos genéricos de verdade”.
A “continuidade do pensamento” Lacan/Badiou localizada por Farrán portanto, não poderia referir-se a uma decisão coletiva. Essa decisão, seja qual for, ainda que tomada por um grupo, será sempre de um sujeito. Porém de um sujeito submetido a condições bem localizadas diante do Outro.
A temporalidade retroativa, na qual o sujeito se constitui, que já vem de Freud e está evidente, entre outras hipóteses, no grafo do desejo, requer, para Badiou, “nominações antecipadas” e “verificações retroativas” sem fim, ou seja, “o acontecimento não é um milagre”, sustenta-se em uma revisão ou na consideração de significantes, tal como o ato. Mas o que o sujeito faz, para Badiou, é uma “verificação dos enunciados” de uma determinada situação, uma verificação que cede e se integra a uma continuidade inacabada na qual o sujeito é apenas uma configuração finita, uma parte de um processo que não cessa (FARRÁN, 2014, pg. 196).
Em “Ética”, o livro que lemos no cartel, Badiou sintetiza um pouco do encontro de suas posições com Lacan. Ele se refere à máxima lacaniana “não ceder em seu desejo”, e a comenta como vindo a significar “não ceder naquilo que não se sabe de si mesmo”, ou seja, em suas palavras, “colocar a perseverança do que é sabido a serviço de uma duração própria do não-sabido” (BADIOU, 1995, pg. 59).
Ele faz caber a lógica coletiva de Lacan numa certa ausência de ética desejante, porque impossível, já que não há um desejo “normal”. Assim o sujeito “de modo algum preexiste ao processo” (...) “pode-se dizer que o processo de verdade induz um sujeito” (BADIOU, 1995, pg. 56). Impossível normalizar o sujeito, porém há uma constante positiva, o processo no qual ele está inserido. O que marca a ação de um sobre o outro é o tempo, além da definição muito particular que Badiou tem de “acontecimento”.
Trata-se de prismar a lógica coletiva lacaniana, que já considera um processo em curso, com um cenário essencialmente positivo, otimista, de fato platonista, onde há uma verdade que será perseguida eternamente pelos sujeitos, numa sintonia com um “bem”. No resumo da ópera, já que não tenho muito mais espaço para esta apresentação, trata-se de instrumentalizar Lacan para convocar os sujeitos a seguir em frente, ainda que desconheçam o contexto, e pensar que isso pode ser feito por muitos ao mesmo tempo, no mesmo contexto, mudando o que vive o grupo. Instrumentalizar a psicanálise como se fosse um sintoma, como algo que precisa surgir. Isso cabe no Brasil de hoje.
Há ainda Zizek, que ama comentar Badiou em sua relação com Lacan e outros, tanto que não descarto ser este um sintoma do esloveno. Este espaçoso comentarista, teremos que deixar para a próxima jornada de encerramento, mas registre-se que, até onde puder perceber, não discorda do Badiou que
REFERÊNCIAS
BADIOU, Alain. Ética, um ensaio sobre a consciência do Mal. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1995.
CEVASCO, Rithée; CANO, German et al. Política do lo real – Nuevos movimientos sociales y subjetividad. Ediciones S&P, Barcelona, 2014.
COELHO, E. P. (1967). Introdução a um pensamento cruel: estruturas, estruturalidade e estruturalismos. In: Coelho, E. P. (org.). Estruturalismo: antologia de textos históricos (pp. 1-75). São Paulo: Livraria Martins Fontes. APUD TRISKA, Vitor Hugo Couto e D'AGORD, Marta Regina de Leão. A topologia estrutural de Lacan. Psicol. clin. [online]. 2013, vol.25, n.1 [citado 2020-11-22], pp. 145-161 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652013000100010&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0103-5665.
ESTEVÃO, Ivan; PRUDENTE, Sergio. Contribuições psicanalíticas a uma política dos afetos. Editora LavraPalavra, São Paulo, 2020.
FARRÁN, Roque. Badiou y Lacan – El anudamiento del sujeto. Prometeo Libros, Buenos Aires, 2014.
LACAN, Jacques. Escritos. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1998.
LACAN, Jacques. A angústia – Seminário X – 1962/1963. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 2005
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