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O novo e o sujeito

  • Foto do escritor: Fábio Sanchez
    Fábio Sanchez
  • 6 de nov. de 2024
  • 7 min de leitura

Atualizado: 20 de nov. de 2024

Com tantas transformações ocorrendo de forma rápida e múltipla no mundo contemporâneo, são inevitáveis as indagações e os questionamentos a respeito do que se transforma e do que permanece em relação ao que acreditamos saber sobre o funcionamento psíquico.

 

A pergunta incomoda a cena psicanalítica: o mundo psíquico, ou, exatamente, o sujeito da psicanálise, muda com o tempo ou ainda é o mesmo da época de Freud? Parece óbvio que, se o sujeito, no sentido lacaniano, é constituído na sua relação com o Outro (a linguagem, a “sociedade”) e este Outro muda com o tempo, o sujeito também mudará, tal como mudam os conceitos de família, de masculino e feminino etc.


Mas, se assim for, os fundamentos teóricos lançados por Freud quase 120 anos atrás, ou por Lacan, há quase sete décadas, e que são base para as escolas de psicanálise poderiam ser questionados a cada modismo.O assunto ocupa espaço generoso nas grades curriculares de instituições sintonizadas com as discussões de ponta. O Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, por exemplo, mantém o grupo de pesquisas (ao qual pertenço) chamado Sujeito Punção Contemporâneo. A Sociedade Brasileira de Psicanálise preparou para agosto deste ano seu primeiro Simpósio Bienal com o tema “O mesmo, o Outro, psicanálise em movimento”, e o 32º Congresso Latino-Americano de Psicanálise, que ocorrerá no Peru em setembro, foca desconstruções e transformações, com o objetivo de discutir, segundo seu presidente, Roberto Scerpella, as “complexidades da psicanálise contemporânea”.


O Instituto Sedes Sapientiae, tradicional escola psicanalítica de São Paulo, tem pelo menos dois cursos sobre clínica contemporânea, cuja proposta é investigar em que medida as novas demandas podem ser lidas “como variantes das formas clássicas da psicopatologia psicanalítica”.

As dúvidas são tantas que, quando o lacaniano francês David Bernard, focado na interface entre psicanálise e contemporaneidade, esteve no Brasil em março, alertou em artigo que os psicanalistas “não deveriam versar sobre um medo e um catastrofismo generalizados” sobre a modernidade e o receio de que tudo mude.


Os herdeiros de Freud e Lacan acreditam em um diferencial contemporâneo, ou pelo menos se interrogam a esse respeito na maior parte do tempo. Freud já estava atento ao contexto cultural de cada momento, como se vê em textos como A moral sexual civilizada e a doença nervosa moderna (1908), em que atribui algumas patologias ao contexto comportamental repressivo da virada do século. Ou quando atribui à tecnologia de transporte (proliferação de ferrovias e transatlânticos) a causa de certo mal-estar psíquico pelo distanciamento de pessoas queridas (em O mal-estar na civilização, de 1930). Mas mesmo aí a estrutura psíquica se mantinha a mesma. Freud considerava tão imutáveis os parâmetros do funcionamento psíquico que avaliou com critérios psicanalíticos Leonardo da Vinci e Moisés. 


Lacan foi mais complexo quanto a esse tema. Era de certa forma conservador, como quando defendeu que a “estrutura” da homossexualidade em 1960, data de seu seminário sobre a “transferência”, era a mesma que a da Roma antiga, mudando apenas “a qualidade dos objetos” (os adolescentes seriam melhores no passado, mais dignos, porque não precisavam ser buscados “na sarjeta” ou em “esquinas recônditas”). Acreditava mesmo que a questão sexual estruturalmente se mantinha porque a interdição ao sexo reformula-se para se manter intacta mesmo quando se estabelecem os novos paradigmas sexuais.


Apesar disso, Lacan não só inovou como questionou os paradigmas. Isso ocorreu, por exemplo, na criação de conceitos como o do “objeto a”, que relativizou a importância do falo, e quando teorizou sobre questões como o gozo, o cinismo e o capitalismo, que seria responsável, entre outras coisas, pela ampliação do racismo e da segregação. Essa relação com o contemporâneo – e os ajustes que requer ou não – é o que se pode chamar de um mal-estar.


Requer trânsito interminável no litoral entre o que é psicanálise e o que não é. Exige pensar possíveis paradoxos como, por exemplo, uma parceria do superego (a instância psíquica repressora por excelência) com o gozo (caso este seja obrigatório, como no capitalismo descrito por Lacan e Slavoj Žižek). Exige, por exemplo, contemplar um aparato como o da tela que carregamos diuturnamente junto à mão (o telefone celular), como um ambiente ao mesmo tempo público e privado, um nó conceitual que já exige novas investigações teóricas. 


É evidente que, para domar idiossincrasias, já foram providenciadas soluções retóricas, que acomodam, lado a lado, o processo histórico e a epistemologia da psicanálise. Há os que falam, por exemplo, não em sujeito contemporâneo, mas em “subjetividades” contemporâneas. Intérpretes de Lacan como Jacques-Alain Miller citam uma “nova estrutura do discurso hipermoderno da civilização”, mas ainda dentro dos paradigmas lacanianos.


A corajosa inquietude da psicanálise com relação a isso encontra caminhos e consensos interessantes quando lança mão de pelo menos duas aberturas para se pensar a contemporaneidade, porque são submissas ao tempo e decididamente interferem no humano. Elas são a tecnologia, na medida em que propicie uma subjetividade e um comportamento novos; e o processo histórico, com seus determinantes (sociais, econômicos, morais, sexuais etc.). A alteração da sociedade de produção, vivida na época de Freud, para a sociedade de consumo, que vivemos hoje, é citada desde o próprio Lacan até diversos pensadores atuais, não necessariamente psicanalistas (Žižek, Zygmunt Bauman, Umberto Eco, Giorgio Agamben, entre outros). Joel Birman já investigou esse cenário em pelo menos dois livros, Mal-estar na atualidade, de 2005, e O sujeito na contemporaneidade, em 2012, e fala em “novas condições” no mal-estar da civilização.


Lacan, com seu arsenal de referências externas à psicanálise (a matemática, o idioma chinês, a linguística, a filosofia etc.), saiu pavimentando pontes com o contemporâneo. Apontou claramente, em seu Seminário 18 (de 1971), em Televisão (1973) e outros textos, o capitalismo interferindo no sujeito, em seu gozo (como na “necessidade” de gozar que o capitalismo de consumo exige, inventando o termo “mais-de--gozar”, análogo à mais-valia de Marx).


Entre os efeitos da assunção dos fenômenos capitalistas, há a “individualização” detectada, por exemplo, por Alain Ehrenberg, quando este fala do “culto à performance”. Nesse contexto, há teóricos como Fernanda Bruno, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que veem o ideal de eu (a identificação narcísica do sujeito com uma imagem projetada sobre um pano de fundo composto pelos pais e heróis da infância) já se sobrepondo ao superego. Os indicadores de uma sociedade repressora estariam cedendo espaço à valorização de heróis; o padrão normativo das identidades contemporâneas parece abandonar os modelos institucionais que se apegam às regras (o bom aluno, o bom trabalhador etc.) em favor dos sujeitos inovadores, intrépidos, desafiadores, com muitos amigos nas redes sociais, portadores de telas.


O outro consenso-chave para a contemporaneidade é com relação à ciência e à técnica. Nesse contexto, o cotejamento com os dias correntes está cheio de esparrelas. O narcisismo desbragado das redes sociais, por exemplo, não é necessariamente berço de algumas características do sujeito contemporâneo. Gustave Flaubert, em seu irônico Dicionário das ideias feitas (escrito ainda no século 19), já descrevia como utilizar a mídia para “brilhar” em sociedade (leia-se, por exemplo, o divertido verbete “Jornais”).


E as fake news, filhas da imensa facilidade que temos para emitir e acreditar em notícias de procedência evidentemente duvidosa porque nos parecem certas, em registrar a vida pública incluindo nosso pitaco, aí teríamos um comportamento realmente novo? Também não. O historiador Robert Darnton descreve em detalhes, em mais de um livro, fake news semelhantes às atuais trabalhando na desestabilização da monarquia francesa pré-revolução, com redes de distribuição extremamente eficazes. 


E o que dizer do anonimato proporcionado pelos games, chats, salas de bate-papo, coletivos diversos na internet? Não seriam novas formas de exercer a fantasia? Bailes de máscaras já no século 17 cumpriam esse papel nos salões e carnavais de rua, onde se podia ser ousado sem a angústia da vergonha e sem ser identificado; e nas ruas, onde podiam se “misturar” nobreza e povão, casados e solteiros etc. Sem contar as formas mais triviais de exercer a fantasia, como as correspondências em festas juninas ou brincadeiras de amigo secreto.


É claro que, evitados o fetiche e o fascínio pela técnica, ou por seu mais recente avatar, a tecnologia, é preciso considerá-la na formação do sujeito contemporâneo. Umberto Eco, por exemplo, lembra, com relação às redes sociais, que “pela primeira vez na história da humanidade, os espionados colaboram com os espiões, facilitando o trabalho destes últimos” (uma mudança na formação da autoimagem?). 


O ser humano é considerado há décadas por alguns pensadores, de Donna Haraway a Amber Case, um tipo de ciborgue lowtec, o que leva a diversos insights sobre o relacionamento com uma tela que torna o Outro presente e ao mesmo tempo ausente (uma abordagem do olhar nova entre as muitas das quais dispõe a psicanálise). E alguns pensadores, como Leroi-Gourhan, chegam a considerar o homem ciborgue, que faz uso cada vez mais frequente de aparatos tecnológicos no dia a dia, uma evolução biológica da própria espécie humana. Filósofos como o italiano Maurizio Ferraris pensam uma nova ontologia do ser humano com base no uso já incorporado do telefone celular.


São questões que não podem ser ignoradas e colocam em jogo a identidade da psicanálise. Se ela está para a passagem do tempo como uma ciência, como a situou Freud, ou se teria alguma das demais atribuições conferidas a ela ao longo de mais de um século, com sujeições distintas ao peso dos anos (investigação, filosofia, terapêutica, processo, método, hermenêutica, hipótese, ética etc.).


Além disso, os efeitos dessas questões sobre a clínica, que é o que ao cabo interessa aos psicanalistas, convocam os escrúpulos dos que não temem mudar paradigmas, ou enfrentá-los. Se houver uma psicanálise da contemporaneidade ou, pelo menos, uma clínica de seus efeitos e da tecnologia, seus termos já estão em campo e pedem passagem.


PARA SABER MAIS

O amor na era do virtual. Cristiane Dias. Em Discurso e sujeito, trama de significantes. Lauro José Siqueira Baldini e Lucília Maria Abrahão (orgs.). EDUFSCAR, 2014. 

Where are you? Em Ontology of the cell phone. Maurizio Ferraris. Fordham University Press, 2014. 

Máquinas de ver, modos de ser – Vigilância, tecnologia e subjetividade. Fernanda Bruno. Editora Meridional, Porto Alegre, 2013. 

O sujeito na contemporaneidade. Joel Birman. Civilização Brasileira, 2012. 

Um olhar a mais: Ver e ser visto na psicanálise. Antonio Quinet. Zahar, 2002.

 
 
 

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