O tempo no grafo do desejo
- Fábio Sanchez
- 6 de nov. de 2024
- 8 min de leitura
Atualizado: 20 de nov. de 2024
Sobre as temporalidades de enunciado e de enunciação com as quais lida a psicanálise. Apresentado às Jornadas de Encerramento das Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, em 30 de novembro de 2019.
O tempo se manifesta sem parar em psicanálise. Trauma, par ordenado, ato analítico, tempo lógico, repetição, transferência, traço unário, elisão, inconsciente, os discursos. São alguns dos conceitos que, entre outros, convocam à sua maneira essa noção. Minha escolha neste momento é abordá-la pensando a formação de sentido. E utilizando como instrumento o grafo do desejo. E já entrego uma questão importante para mim: a “produção da verdade” e como a verdade se “agarra no sentido” (entre aspas porque são termos de Sandra Berta, em palestra para o Módulo de Transmissão do FCL-SP sobre o Seminário 17 de Jacques Lacan, O Avesso da Psicanálise, em 31 de outubro passado).
Ao colocar em questão o sentido e a produção de verdades, tenho que acomodar em algum lugar a questão do ato analítico e o que ele implica, revelando que, se trago essas coisas, isso tem a ver com minha questão e minha presença no Cartel Inconsciente e Temporalidade, do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, que já segue para seu segundo ano.
Começando pelo início, no início era a mãe. A questão do Outro materno é imediatamente convocada quando se acha o verbete “sentido” nos dicionários de psicanálise de Alain de Mijolla (MIJOLLA) e de Pierre Kaufmann (KAUFMANN).
Sejamos prudentes e sigamo-los porque a cena é emblemática: a mãe interpreta as necessidades do bebê como sinais portadores de sentido. Vai, portanto, responder ao bebê em função dessa sua interpretação, ou seja, do seu próprio desejo, que estará ou não de acordo com o sentido do que deseja o bebê, ou do que ela atribui ao pedido do bebê. Este vai responder a ela e estas respostas vão adquirir novamente sentido e valor para ela. Dessa forma, “o sentido responde em seguida a uma necessidade de causalidade que constitui, no domínio do pensamento, o equivalente a um reencontro com a experiência de satisfação primordial” (MIJOLLA, pg. 1704).
Avancemos com Kaufmann (pg. 463): “Na reiteração da experiência de satisfação, o sujeito se vê preso nas malhas do sentido”. E ainda com Marco Antonio Coutinho Jorge (JORGE, pg. 76): “O sentido da fala do sujeito está submetido a uma temporalidade que implica que a significação se projete no discurso de um modo tal que ela só pode se produzir depois”.
Lembremos então ao esquema do grafo do desejo, com suas linhas que vão horizontalmente da esquerda para a direita, inscrevendo a temporalidade no campo da diacronia, e a que vai em arco retrógrado da direita para a esquerda, mostrando que aquela diacronia se vincula a uma sincronia Quando elas se encontram, o que se encontra é o desejo da mãe e o choro do bebê. No momento em que o sujeito passa pelo Outro (A), convoca um significado que já foi estabelecido. O grafo do desejo é, nas palavras de seu construtor, Jacques Lacan, em essência, um “efeito de retroversão pelo qual o sujeito, em cada etapa, transforma-se naquilo que era, como antes, e só se anuncia ‘ele terá sido’” (Escritos, pg. 823).
Até aqui falamos do tempo do enunciado e de como ele se produz, um tempo da cadeia significante, os pontos de afetos que se formam na história pessoal, as reminiscências das quais um sujeito sofre. Mas há também o tempo da enunciação, do dizer, do timing, aquele que se vê em “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada” (Escritos, pg.197), com sua famosa história dos prisioneiros que precisam solucionar uma questão lógica para sair da prisão. Quando alguém fala, depois de encontrar a significação do outro, quer dizer algo num dado momento, e a escolha desse momento é essencial para o que se vai dizer. Se for cedo demais, pode não ter efeitos, porque os semelhantes não estariam prontos para ouvir; se for tarde demais, pode não ser mais útil ou necessário.
Passado, presente e futuro juntos. Então marque-se essas duas temporalidades em constante relação: a da cadeia de significantes (o resgate da significação) e a da intenção de dizer (a asserção). Trabalhemos com elas. A história dos prisioneiros contribui quando prismada sobre o grafo do desejo porque, como lembra Alfredo Eidelsztein (O Grafo do desejo, pg. 77), Lacan propõe que “Outra questão que Lacan propõe é que a temporalidade em jogo é a da
antecipação e a da retroação. É a retroação, precisamente, a que fecha em forma de um círculo. Toda a estrutura é a de um bucle [em forma de anel]. Ainda que devamos não perder de vista que a temporalidade em jogo aqui não é somente retroativa (essa que situamos na função do ponto no sentido do ponto de basta – que fecha o deslizamento da significação), mas que está também (n)o tempo da antecipação”.
Imagino saber o que os outros sabem e por isso devo antecipar-me a sair antes que os outros o façam, pensa o prisioneiro. Convoca-se os tempos referentes àquilo que já se sabe, e também àquilo que é necessário fazer agora. Esse tempo de antecipação e retroação indica que, assim como o significado do Outro – s(A) – pode deter a significação; a ordem simbólica (A) tem o poder de incidir sobre os significados que virão. Esta relação provoca (ainda segundo Eidelsztein), uma marca que deixa a demanda do Outro sobre o desejo do sujeito, tal que este fica articulado a essas marcas (pg. 78).
Podemos afirmar, com Lacan, no seminário 17 (pg.62), que se há uma asserção advinda dessa operação de retroação, ela ganha forma de verdade, ou “se anuncia como verdade”. E se falamos em verdade e em real revelado, cabe perguntar onde estão os antagonistas e ocultadores: a falsidade, a mentira, o engano. É com eles que a cura tem que se encontrar em combate, já que, como lembra Lacan ao referir-se ao modo como o náufrago Robinson Crusoé apagou a primeira pegada estranha que viu na praia, o sujeito não quer saber nada a seu respeito.
Podemos ainda dizer, com Freud (FREUD, 1918), que já plantara a semente da ideia de par ordenado e da ideia temporal de cadeia significante (S1, S2...), que "A relação da fantasia com o tempo é, em geral, muito importante. É possível dizer que uma fantasia flutua de algum modo em três tempos, os três momentos de nossa atividade representativa. O trabalho psíquico se vincula a uma impressão, uma ocasião no presente que esteve em medida de despertar um dos grandes desejos do indivíduo; a partir daí, ele se reporta à lembrança de uma experiência anterior, a maior parte do tempo infantil, no curso da qual esse desejo era realizado; e agora ele cria uma situação que remete ao futuro, que se apresenta como a realização desse desejo, precisamente o sonho diurno ou a fantasia que nele carrega doravante os traços de sua origem, a partir da ocasião e da lembrança. Passado, presente, logo futuro, como se encadeados no cordão do desejo que os atravessa".
Gozo e verdade
Chamemos o que Lacan diz sobre a verdade, ao afirmar que ela obtém sua garantia de um lugar outro que não o da realidade, “para que a Fala que ele [o significante] sustenta possa mentir, isto é, colocar-se como Verdade” (Escritos, pg. 822).
Podemos seguir esses percursos de diversas formas em suas operações de alienação e separação, de modo a promover um resgate do inconsciente, dos significantes do sujeito e de seu desejo. Podemos verificar como se dá a marca inicial da instalação de um gozo (ou, como no caso do trauma, a perda de um gozo); e seu reaparecimento motivado pelo real ou por algum tipo de ato, analítico ou não, assim como os efeitos do a posteriori.
Investigar a ação do tempo funcionando em meio a escansões em que um significado apoia-se em outro, “de modo a que (a ação do tempo) participe daquilo que causa nosso desejo” (Nominé, Livro Zero nº 9, pg. 35). Encontraremos na clínica muitos tempos em jogo, desde a procrastinação do obsessivo (adiando a hora de seu desejo), à antecipação que o histérico promove, e à prevenção que o fóbico adota etc.
Ocorre que esse resgate, como se dá e suas consequências, é questão relevante e delicada, principalmente na clínica, já que, como diz Antonio Quinet (em “A descoberta do inconsciente”, pg. 100), não caberia ao analista trazer significados e sim “fazer valer o desejo como efeito de significação através dos lances do sujeito”. Note-se: o que está sendo colocado em questão agora é a posição do analista e sua inserção no universo temporal do analisante. Seria esta, a do analista, uma terceira temporalidade, a ser acrescentada às outras duas?
Cabe a pergunta: o ato do analista, ou ainda o real revelado, ao convocar o passado, trazer o simbólico e buscar o desejo, constitui o sujeito? Forma ou deforma suas escansões e efeitos de sentido? E como faz? Luis Izcovich (IZCOVICH, pg. 69) lembra que o inconsciente não conhece o tempo, mas que a cura analítica, segundo Lacan, além do inconsciente, também está ligada “ao real do sintoma, que é determinante para o manejo do tempo na cura”. Cabe ao analista, com o ato, interromper um determinado compasso e levantar o véu que cobre a verdade, descobrir ali os sentidos aos quais ela está agarrada e constatar que ela, a verdade, é irmã do gozo e “levanta vôo”, desaparece, assim que se deixe de prestar atenção nela (LACAN, sem, 17, pg. 59).
Para isso, há uma enunciação do analista. Se o verdadeiro não é interno à proposição, mas “depende apenas da minha enunciação, ou seja, se eu o enuncio com propriedade” (Lacan, idem, pg. 63), então o ato analítico, o “horror do ato”, como descreve Lacan, também se inscreve entre os operários que trabalham arduamente na produção de “verdades”.
O tempo que vemos no construto teórico do Grafo do Desejo ajuda a pensar a entrega, pelo analista, do que pode ser tido como verdade, e que terá também sido produzida. Tomando-se as características dos pontos de basta do grafo, onde se encontram os vetores horizontais e o arqueado, onde o discurso da mãe se encontra com as necessidades do bebê: é função deles deter o deslizamento infinito da significação. Mas eles o fazem numa certa temporalidade de retroação e antecipação que não é a antecipação imaginária do modelo óptico, ou seja, não se antecipa uma imagem toda.
Então o que se antecipa? De que meias-verdades estamos falando, ou quais delas o analista ajuda a transmitir? O que se antecipa é da ordem da repetição, que se repete sempre na diferença (a verdade agarrando-se em sentidos apresentados pelo Outro). E o que se repete é da ordem do gozo. Quando Lacan convoca a irmandade entre gozo e verdade, o capítulo IV do Seminário 17, está se referindo a um construto em permanente reforma, ao sabor de pares ordenados que se organizam de acordo com necessidades e demandas diferentes, em repetição cifrada que cabe ao analista decifrar.
O estatuto da verdade, quando o sabemos falho, porque mediado pela demanda e pelo Outro do desejo que dá sentido à demanda, nos remete à humildade e à prudência. Ela, a verdade, é inatingível, como mostram as fórmulas dos discursos, mas insinua-se malandramente o tempo todo, e aos analistas cabe buscar suas formações nas franjas dos sentidos e das significações.
Cabe-nos buscar, como diz Bernard Nominé (NOMINÉ, pg. 35) citando Emil Cioran, o “tempo que não se rebaixa ao acontecimento”.
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneio, 1918. JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da Psicanálise - de Freud a Lacan. Zahar, Rio de Janeiro. 2017. KAUFMANN, Pierre. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1996. MIJOLLA, Alain de. Dicionário Internacional de Psicanálise, Editora Imago, Rio de Janeiro. 2005. NOMINÉ, Bernard. Função do tempo no desejo e seu uso na estrutura hoje. Livro Zero, Revista de Psicanálise. Número 9. Fórum do Campo Lacaniano, São Paulo, 2018 _________________________ *Apresentado na Jornada de Encerramento das Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, em 30 de novembro de 2019.
Comments