O desejo oculto em Severina Xique Xique
- Fábio Sanchez
- 6 de nov. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 20 de nov. de 2024
De todas as vontades insanas e reprimidas, o bico do seio da mãe é de longe o segredo mais intrigante. Há quem atribua a perda da memória dos prazeres da primeira infância a um positivismo biológico (o hipocampo cerebral não está totalmente formado), mas o bico do seio da mãe não existe apenas em si, nem só naquele momento da primeira mamada.
Ele é também uma referência, um totem fantasmático, um ícone que Freud transformou em pista para o entendimento do humano. Ele está aqui e agora, preservadíssimo e viçoso, cutucando nossa boca em qualquer evento que, em nossa epopeia pessoal, sugira prazer. Ou melhor dizendo, gozo (que também está no desprazer, como comprovam masoquistas e histéricos).
Por essa e outras, como a sugestão de que a psique feminina se forma baseada na inveja do pênis, pesa sobre Freud a acusação de pansexualismo. Mas o tempo não passa sem lembrar a todo momento que somos, sim, seres desejantes em tempo integral. Não há a menor dúvida a respeito dessa constante em nossas vidas. O que muda é, isso, sim, a forma de tentar escondê-la, ou revelá-la.
O filósofo Slavoj Žižek refere-se à assertiva da série de televisão Arquivo X (“a verdade está lá fora”) para garantir que é impossível esconder qualquer ideologia ou característica da cultura, e principalmente os desejos. Está tudo aí explícito no dia-a-dia, na arte, na arquitetura, nos hábitos, até no jeito de lavar louça ou na configuração dos vasos sanitários (El acoso de las fantasias, Ed. Akal, 2011, pg . 9 a 11).
Essa ideia de que nossos desejos não podem ser escondidos me veio ao ouvir um dos mais recentes trabalhos do músico Nando Reis, o “Bailão do Ruivão”. Ele canta a clássica “Severina Xique Xique”. Para quem é jovem demais para ter frequentado os comícios das Diretas ou do Fora Collor, explico que este é um baião (tendendo ao xote) que conta a história de Pedro Caroço.
Interesseiro, ele passa o dia “fazendo cena” para a moça do título porque está “de olho na butique dela”. Segundo a letra, a butique, provavelmente uma loja com produtos de beleza, fatura bem e tornou Severina interessante, ela que, quando criança, jamais chamou a atenção masculina. Mas acontece que todas as falas intercaladas de quem canta (e Nando Reis não é exceção, pois também exercita essa malícia iniciada já pelo cantor original, Genival Lacerda) deixam bem claro que a butique que gera o interesse em Severina é outra coisa, é algum prazer carnal não dito, mas o tempo todo sugerido por Genival (“Você querendo um sócio, olha aqui seu Babá”) e Nando, ainda menos sutil (“Eita buticão gostoso...”)
A utopia que move os homens na direção dessa mulher, e que atrai não apenas o personagem, mas acaba por envolver os próprios cantores, é evidentemente esse ícone que Freud não teria receio em incluir na categoria de seios de mãe. Um prazer ancestral, inconsciente, que resolve e dá sentido à plenitude do mundo, todo o mundo pode parar ali. Mas esse gozo, e aí é que está a questão, não pode ser dito. É um prazer proibido, que pode ser apenas emulado, que só tem graça quando subentendido. O que é dito explicitamente, o que está autorizado na letra da música, é o mau-caráter de Pedro Caroço. Todos sabem, todos cantam de modo a deixar claro, que ele quer fornicar. Mas essa intenção é reprimida em favor de tornar moeda corrente o golpe do baú interesseiro. Cabe a pergunta: por que o mau-caratismo é permitido onde o sexo é expulso?
Outro caso, este do fim de maio: em Los Angeles, uma das maiores polêmicas do ano foi apontada pelo colunista do jornal “NY Post”, Emily Smith: a Motion Picture Association of America (MPAA), responsável pela (auto)regulamentação do cinema nos Estados Unidos, proibiu o pôster do filme “Sin City 2: A Dama Fatal”, de Frank Miller e Robert Rodriguez. O motivo: “a nudez – curva abaixo dos seios e o círculo dos mamilos/aréolas escuro visível através da camisola.” Detalhe: a atriz Eva Green aparece na foto, belíssima e de fato com o bico do seio insinuado, segurando um enorme revólver. Sim, nenhuma palavra quanto ao revólver no país onde já houve dezenas de massacres a escolas infantis (veja o blog de Rodrigo Salem, do Yahoo! Cinema, e a imagem no final deste texto). O bico do seio não pode, mas o revólver, tudo bem. Há algo errado na libido dessa indústria. A menos que o revólver seja um emblema fálico.
Aos que ainda acham que, no caso de Severina, essa ocultação do desejo pode ser apenas uma herança da nossa tradição católica, ampliemos a análise e vamos entrar de sola no assunto que nos interessa a todos, o Jornalismo e a Comunicação: Tomemos, por exemplo, um caso de divórcio entre a “opinião pública” e a mídia: o affair entre o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, e uma estagiária da Casa Branca, Monica Lewinsky. Clinton deixou a presidência de seu país em 2001, após um longo e tumultuado escândalo em que se verificou que ele manteve encontros sexuais com a estagiária, em ambiente de trabalho. Neste caso, a ação condutivista (caracterizada pela cobertura ostensiva, intensa, exagerada, com viés partidário e, portanto, oposicionista) causou o que os norte-americanos chamaram de “obsessão da mídia” pelo caso, num excesso de conteúdo divulgado que gerou, da parte do americano médio, uma clara redução da credibilidade na imprensa como produtora de informações equilibradas sobre este assunto.
Uma pesquisa publicada pelo Media Studies Center, instituição norte-americana de estudos sobre Comunicação, no auge da cobertura sobre o caso, no final de 1998, indicou que apenas 18% da população acreditavam que os repórteres que cobriam o affair e suas implicações teriam padrões éticos “altos” ou “muito altos”. E Clinton deixou o governo com a aprovação de seis em cada dez norte-americanos. Ainda hoje é amado pelos eleitores, tornou-se um dos palestrantes mais bem pagos do mundo e foi solicitado pelo atual presidente, Barack Obama, para atividades conjuntas quando este vivia sua própria crise de popularidade, em 2012.
O que aconteceu aí? Para Žižek, a mídia perdia tempo ao insistir que Bill Clinton mentia, porque desconsiderava a subjetividade do receptor e sua relação com o “grande Outro” (conceito de Lacan), uma entidade percebida por todos como um tipo de tutor não-dito, extremamente autoritário e presente. E como esse “grande Outro” é um produto de nossa própria mente, faz o que achamos que deve fazer. E achou por bem não se importar com a escapada de Clinton.
Por mais que uma notícia espelhe a moral vigente, jamais poderá vencer o fato de que as pessoas oprimidas por esta moral podem intimamente, ou inconscientemente, discordar dela, dependendo de onde situa esse “grande Outro”. Se a resposta à pergunta “o que quer o outro?” permitir um desencontro entre a moral e a libido, esse desencontro será aceito pelo sujeito. A Psicanálise admite que frequentemente ocorre a aceitação desse desencontro (embora não como conflito), demonstrando novamente a comunicação não-dita que permeia a relação da mídia com seu receptor: São estas as palavras de Žižek:
A maioria das pessoas pensava que havia qualquer coisa entre eles, que Clinton mentia quando o negava; contudo, apoiavam-no. Apesar de suspeitarem que ele mentia quando negava ter tido uma aventura sexual com «aquela mulher», Monica Lewinsky, ele mentia com toda a sinceridade, com íntima convicção, acreditando de certo modo na própria mentira, levando-a a sério. Esse paradoxo deve ser, em si, levado a sério, pois designa o elemento-chave da eficiência de um enunciado ideológico. Por outras palavras, enquanto a mentira de Clinton não era apreendida/gravada pelo grande Outro, enquanto lhe era possível salvar as aparências (da «dignidade» presidencial), o próprio facto de nós sabermos (ou presumirmos) que ele mentia servia de fundamento suplementar para a identificação da opinião pública com a sua pessoa – o facto de a opinião pública saber que ele mentia e que se passava efectivamente qualquer coisa entre ele e Monica Lewinsky, não só não quebrava sua popularidade, como participava até activamente no seu crescimento. Nunca nos devemos esquecer que o carisma do Líder se apóia nas próprias características (sinais de fraqueza e de «humanidade» comum) que podem parecer minálo.
(ŽIŽEK,O Sujeito Incômodo. Ed. Relógio DÁgua, 2009, pg. 328)
Estamos, portanto, sob o dogma cínico de um prazer condenado a ser silenciado, uma utopia para sempre muda, uma butique condenada a ser sempre um genital insinuado como uma loja de produtos de beleza, mas que já não é segredo para ninguém. Isso está aí todo o tempo. Os gestos obscenos de masturbação na coreografia de Michael Jackson, que não causavam escândalo porque, afinal, se trata de um Peter Pan moderno. Os beijinhos entre jogadores de futebol após o gol, sabe como é, a emoção é forte.
Os selinhos entre cantoras e atrizes nos programas de auditórios ou nas cerimônias de premiação, apenas uma provocação ao mainstream. Ou seja, está tudo ali. Mas não está, não pode estar, e estamos condenados pela indústria cultural ao pudor . Só que não. A verdade teima e sempre estará também ali, como que a dizer que toda utopia vale a pena.
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